Orelha

por João Gilberto Noll

Antonio Calloni se aproxima do leitor qual um artista naif. O Brasil que ele revela parece ser à primeira vista o da infância histórica do país. Matutos, moças de babado, pífaros - um encanto imemorial aos olhos de quem vê seus quadros/contos a partir do umbigo dos grandes centros urbanos.

Mas só à primeira vista. Logo se percebe que esse autor, de escita musical, apresenta mais do que uma reconstituição das tortas relações "primitivas". Pois o que realmente está em questão aqui é uma certa dormência no ato de viver, uma flutuação sem destino aparente, vivida por criaturas à beira de um idílico estado demencial.

Amaralina é o amor de Serapião. O ritmo andante de uma narrativa quase em versos, a repetir suas palavras (feito jaculatória pagã) em melodias melancólicas, sem pressa de chegar a algum lugar, esse ritmo, sim, ainda nos fala de uma qualidade de afeto arcaico -, esquecido na babel de hoje. É este sentimento que puxa os personagens para a frente, antes que se desvaneçam em seu coagulado pensar. O próprio Serapião confessa a um perigoso comparsa: "Vou encontrar o meu amor".

A crueldade infantil atua também nesse livro envolvente, cálido, a mostrar que, mesmo que suas figuras pareçam saídas das mãos de um artista popular, como se as tivesse composto em barro, não, não existe lugar para o riso com seu significado unívoco, pedestre. O riso dos personagens desse paciente ourives Calloni extrapola o conteúdo de sua possível fonte, esgarçando-se para nada, ou, talvez, para o infra-humano do nosso cotidiano contumaz. Ah! fino prosador, alçando a nossa miséria à marca exemplar da fábula.

orelha do livro O sorriso de Serapião e outras gargalhadas
de Antonio Calloni