PREFÁCIO
por Moacyr Scliar

Concentração de renda é uma coisa da qual ninguém gosta. Mas concentração de talentos é outro papo, é uma surpresa sempre agradável e, mais que agradável, entusiasmante: dá testemunho das múltiplas possibilidades do ser humano. Antonio Calloni é, como todos sabem, um belo exemplo de talento multifacético. É o ator que todos nós admiramos, na tevê, no cinema, no teatro. A partir da minissérie Anos dourados (Globo, 1986), foram numerosos os seus trabalhos na tevê, incluindo Os Maias, Terra nostra, Chiquinha Gonzaga e Amazônia, de Gálvez a Chico Mendes. No cinema, atuou em Policarpo Quaresma, herói do Brasil, de Paulo Thiago. Mas Calloni é também escritor e poeta, o autor de Os infantes de dezembro (1999), A ilha de sagitário (2000), Amanhã eu vou dançar - Novela de amor (2002), O sorriso de Serapião e outras gargalhadas (2005). Um trabalho recebido com aplausos. "Fino prosador, alçando a nossa miséria à marca exemplar da fábula", diz João Gilberto Noll na orelha de O sorriso de Serapião e outras gargalhadas. "Isto que tem às mãos, leitor, é literatura transcendente", garante Pedro Bial ao analisar Amanhã eu vou dançar - Novela de amor. E ninguém menos do que o grande Manoel de Barros afirma, a propósito de Os infantes de dezembro: "Sua poesia vem de uma aguda percepção da nossa mais vulgar vivência. Gosto de tudo".

Com Paisagem vista do trem, Antonio Calloni nos dá mais uma demonstração de seu enorme talento poético, um talento que resulta de um notável domínio da forma associado a uma profunda sensibilidade. Tomem, por exemplo, Notícia sobre a criança. Ali, Calloni nos diz: "a mulher com morte cerebral / deu à luz / uma criança". Esses versos, ele os repetirá três vezes: para que esse brutal fato da vida se imponha à nossa desamparada incredulidade. Mas Calloni não fica nisso. Ele não quer que fiquemos nisso, na incredulidade, na tristeza. Ele quer que partamos da morte para descobrir a vida. De novo temos o jogo poético da repetição, mas desta vez galgando patamares da reflexão (aquilo que sempre fazemos quando meditamos sobre o sentido da existência) até chegarmos a um decisivo final: "a morte deu à luz / uma vida / anterior à poesia / superior a notícia". Uma pausa, e o derradeiro verso: "e a luz se fez". Uma sentença bíblica, que nos remete ao mistério da criação, porém com outro sentido. A luz se faz não com o "Fiat lux" do Gênesis, mas quando o ser humano supera suas limitações, quando a vida de um ser compensa a morte de outro. Outra celebração da condição humana temos em "Quem são essas pessoas?". Esse é um poema que, como Neruda em El libro de las preguntas, é feito de indagações. Indagações que parecem nascer da surpresa, da estranheza:

    Quem são essas pessoas
    que sonham com carros antigos?
    Quem são essas pessoas
    que compram o Gordini sonhado
    com pouco soldo e lhe vestem roupa nova
    e moderna?

A estranheza aqui não é só daqueles que nunca ouviram falar de um carro chamado Gordini; a estranheza, a deslumbrada estranheza, é de todos nós, diante de pessoas que dedicam a um carro antigo um inesperado carinho. Mas Calloni não fica aí. Ele tem mais perguntas a fazer. Como Sócrates, ele acredita que a interrogação é o caminho para a descoberta do outro. E assim ele indaga:

    Quem é esse homem
    que ainda se espanta com a beleza
    da mulher amada
    e que não se cansa de se extasiar
    com a robustez das suas coxas?

Perguntas encontramos também em "A primeira moradia": "Que luz é essa que percebo / com meus olhos ainda mal formados?". É a criança que pergunta, e que quer não apenas respostas, mas, ainda no útero, quer o conforto e o apoio da mãe, porque, e notem a beleza destes versos, "eu sei coisas pelo teu ventre / mas é tua alma que sabe de mim". "Inventei meu verbo, meu tempo", diz Calloni, em "A moça maior". E mesmo que o verbo fale de "torta senda, verdade louca", o resultado é uma celebração poética. Para a qual todos nós, admiradores de Antonio Calloni, estamos convidados.

do livro Paisagem vista do trem
de Antonio Calloni