A pequena loja de poesias

Antonio é poeta assustadiço de profundezas
Ganha a vida vendendo poesia numa pequena
loja no centro da cidade
onde o comércio varia de calcinhas a lojas de
peças de automóveis.
Gosta do lugar. Sente prazer em ouvir a cantilena
do vendedor.
É seduzido de coisas possíveis
Faz poesia com gentes bebendo água, com aro de
bicicleta, com coisas, com mulheres. Faz poesia
canhota e lúbrica. Poesia muscular e acéfala
que aumenta apenas aos perplexos.
Gosta de prólogos e finais. Não tem tempo de
contar a história pois trabalha muito e nos
momentos de folga ri para o céu e beija bocas de
uma só fêmea.
Antonio é vendedor com argumentos corporais.
É um alegre de esmos.
Dizia-me ele: "Se a poesia se embranha lá nas
fundezas do mar onde os peixes usam lanternas o
meu miolo derrete e sai todo pela orelha.
A pressão naquelas bandas é astronômica.
Gosto da poesia que eu concordo, mas gosto mais
daquela que tem concordamento torto. É aquela
que desmente, me tira o vício e me trata como
criança.
Gosto da poesia que senta no vaso como eu.
Gosto da poesia que ri e fode e anda de roda-
gigante e grunhe e faz o diabo. Gosto daquela que
me cutuca nas costas e quando eu me viro para ver
ela já se foi, rindo da minha cara de urso. É só
isso que me interessa. A poesia que se junta ao
meu corpo feito carrapato me deixa satisfeito
como os tontos da esquina.
Você não quer comprar uma poesia que funciona
com baterias de lítio?
Olha só o que chegou ontem do Japão:
pacotes de poesias americanas para microondas,
poesias finlandesas para tomar com gelo, 20
quilos de bacalhau em versos, poesia erótica
calibre 45 para abater raciocícios, sonetos para
peles ressecadas, tubos de aerossol com palavras
obscuras de efeito moral e 5 sacas de ração para
poesia que leva mostrada, dentes moídos,
vitamina E, mulheres com espartilho, avencas,
bananas, automóveis importados, computadores,
etc., etc., etc. Não contém conservantes e não
contém açúcar.
O que é que você vai levar?"
O freguês antigo dos meus olhos passeou pela
pequena loja e fez a sua escolha.
Levei para casa um pacote de sopa de letrinhas e
uma poesia fêmea prenha de nove meses.
Ao longe pude ver Antonio fechando a sua loja
depois de um dia extenuante de trabalho. Desceu
o rolo da porta, pôs cadeado, acendeu um
cigarro, fez o sinal-da-cruz e esticou seus ossos
para se aumentar. Andou e mostrou-me as
costas, e a distância pude ver, como um efeito de
computação moderna, Antonio se transformar
lentamente num gato anoitecido à procura de
lixo e coisas esquecidas. A noite era simples com
seu perfume de mundo, e seu gato feito de escuro
vagava tranqüilo sobre a superfície da lua
esburacada de sonhos.

do livro Os infantes de dezembro