A Ilha de Sagitário

para meu eterno herói

Acordou cedo na madrugada com o assobio do velho pai. Como ele, colocou meias grossas, calçou botas de couro até o meio da perna, vestiu uma calça de brim, uma camisa de mangas compridas para dificultar os insetos, um chapéu de pano, um canivete suíço, uma cartucheira com "pindurilho" para carregar aves mortas, e sua Barreta calibre 36, presente dos treze anos.

São quatro horas. Tomam café quente. Pão quente. Olha a sua 36 ao lado da 20 cano duplo do pai recostadas na parede. Vê a pele furiosa do pai e seus olhos mansos. Pensa no apito de chamar marrecos e paturis, e imita o som na sua cabeça. Um longo, um curto e um longo. E o bicho aparece no céu. Ouve-se um estampido. O céu retorna azul. Cisma o cotidiano dos caçadores e não consegue se lembrar do primeiro pássaro que matou. Seu tiro é certeiro. Se o pássaro cai ferido, bate a cabeça do bicho na coronha da espingarda até a morte, e coloca o pescoço do defunto no pindurilho, atitude que contém apenas o seu movimento. E segue em frente com o pai e com Diana, o perdigueiro bilíngüe (seu pai dá ordens em italiano). Ordens bruscas. Recortadas. De muitas pontas.

Depois do último gole de café, seu pai diz:

- A Che pensi ?
- Estou pensando na caçada. - O filho recebe de volta um quase sorriso.

Deixam a mesa, seus restos, e saem da cozinha que será arrumada pela mãe. O pai tranca a casa. A mãe já recebeu dois beijos.

Sobem na Kombi com Diana e as armas. Deixam a cidade, e a estrada continua imperfeita; param no posto para mijar, não conversam. Diana bota baba pela língua, olha pela janela e pensa coisas de cachorro enquanto a Kombi viciada faz esforço de boi. O olhar é reto, despovoado. A distância é valente, e a estrada faz ver cafezais, laranjas, capim, verduras, morros, rios. A Kombi está com os vidros abertos, e o vento dá de presente aos dois caçadores uma alegria surda porque a inquietude da lonjura é maciça, mas existe prazer na demora, existe pressa, existe sede, existe uma outra vida. Existe amor de homens com botas, armas e quietude.

... estrada...
... tempo...
... silêncio...

Pelo retrovisor da Kombi, o filho vê um menino conduzindo uma carroça carregada de espadas e escudos. Parece lixo, osso de gente, parece alegria de guerra, aquela vida antiga. O menino limpa o suor com as costas da mão. As cores são fortes. O cavalo usa sua muita força, e a carroça se arrasta triste e rangida. As fisionomias são de tragicidade circense. O menino, o cavalo, a carroça. O menino faz um aceno, o filho não pode chorar. Faz uma prece muda a São Francisco escurecido. O pai olha pelo retrovisor e nada vê. A Kombi domesticada leva os caçadores por um caminho de terra, buracos e lombadas. Mais hora. Diminui a velocidade. Pára. Motor desligado. Portas batendo. Terra firme sob os pés e patas. Carregam as armas.

Estão no mato, um lugar nascido no interior de um tempo rápido, arredio, e todos parecem farejar no silêncio necessário, o quarto caçador. Começam a caminhar em fila indiana. Seu pai, a cadela e ele. O vento não trabalha, o azul do céu não tem falhas, e o calor apresenta sua pasta gordurosa, ruim. Seus passos de palavras nenhumas contêm milênios.

O silêncio é gigante. Seu pai não usa o apito porque os paturis estão em outra época e lugar. Diana fareja e não localiza o assassinato. Os pássaros não querem morrer. Nenhuma pomba do ar, nenhuma juriti, nenhum nambu, nenhuma codorna ou perdiz. No céu, apenas as horas e insetos voando. O tempo, com sua saúde implacável, fabrica suas horas sem pedir licença. De propósito... lento... E a mudez com sua cor escura dá mostras de aumentar... o filho lembrou que Diana, algum tempo atrás, havia sido sua amante. Esfregava seu pau no pêlo curto e manchado. Ela parecia gostar, ficava quieta...

O pai, imóvel e atento, espera embaixo de uma grande árvore.
O homem de boa sombra.
Olha para o pai como se fosse a primeira vez.

Ennio Pietro.

Renascentista de corpo, o homem. Nos cabelos grossos, o tempo mostra seu movimento e sua cor branca. Corpo coberto com pele de rinoceronte. Lembra do pai apagando o cigarro no calcanhar. Ele gostava de apagar velas com os dedos. Um metro e setenta e nove (diminuídos). Homem forte.

Vê sua infância e seus cabelos de mulher. Pequeno e estranho com um doce na mão. Essa criança é seu velho pai. Vê sua adolescência e "la sua puttana". O pai molhando os pés no rio, de camiseta e calção. Vê a vila onde ele nasceu, Ponte San Pietro. Itália. O seu traço preciso e delicado, aprendendo a desenhar no Liceu. A bendita recusa do exército pela sua jovem magreza. Vê bombas em 45. Seu pai escondido no bosque, sua mãe levando comida. "Um bacio", um bem-querer. A viagem de navio. O som do apito... Como as bananas são baratas aqui!

Vê o homem que treinou seus olhos para pequenos movimentos entre galhos e folhas. O homem que treinou seus olhos para o céu. Para asas. O homem que ensinou a dar o nó certo no anzol e que mata por prazer. O mudo. O austero de amor grande e escondido, aquele que implode e adoece. Aquele que diz: "Matou, tem que comer". O do egoísmo masculino, inevitável. O pai que constrói prédios, o pai que esquece os óculos da amante no porta-luvas do carro. O pai e seu lirismo pontiagudo. O hesitante. O que faz mágicas pro filho de olhos encantados.

Vê o velho pai que espera embaixo de uma grande árvore.

O homem de boa sombra

- A Che pensi?
- Estou pensando na vida, papa.
- Certo. Eles não querem aparecer.
- Então vamos pra casa.
- Espera. Fica quieto e espera. - Olham o horizonte avermelhado. Chegam a ouvir o som de um pássaro que não sabe piar, mas sabe rir. Um pássaro com garganta de homem. Invisível. Um monstro. O calor faz o tempo parar, apenas os mosquitos têm direito ao seu balé, seu apetite e suas gaitas de fole. O monstro ri.

... o sol começa a ficar cansado...
... mais tempo...
... o anoitecer chega de viagem...
... é muito velha a lágrima que não quer visitar o mundo...
... existe tonelada no gesto...
... tempo...

O pai faz um carinho no pescoço do filho, e o olhar para o nada determina o final da caçada.

Subiram na Kombi com Diana e armas. Pelo caminho, observa a figura do seu herói e suas dores lombares. Uma identificação na precariedade e no carinho. Na vontade e no tempo. O desejo comum de mergulhar com garrafas e ver o fundo do mar. A vontade de ter uma ilha. Maledetta isola! Desejo de tiros e ópera. Desejo de matar para ser amigo da morte e de seu poder.

Chegam em casa. Anoitecidos. Seu pai sorri para ele. Reconhecem, cúmplices, algumas coisas secretas. Dá um beijo no rosto do seu pai e diz:

- Buona notte.
- Buona notte.

O filho toma banho, entra no seu quarto. Deita-se na cama. Está em outro lugar, vê as coisas de muito longe. Vê o pai e o filho, e sente alguma dor. Um prenúncio. E pede: Deus, conta-me uma historia. Dormiu.

Na outra manhã, o pai acordou de sobressalto. Teve a sensação de ter engolido sua grande alma de uma só vez. Alma que talvez tivesse vagado durante a noite, uma hipótese vaga na cabeça de um homem que era quase cético e alimentava o desejo de um dia possuir uma ilha onde pudesse pescar e ouvir tranqüilamente o berro ácido da gaivota.

Como de costume, antes de se levantar da cama, permaneceu por alguns minutos sentado com o olhar fixo na parede branca do quarto que havia construído com suas próprias mãos. Levantou-se, caminhou até o banheiro, e fez ode costume. Olhou seu rosto no espelho e, sem saber por que, esboçou um leve sorriso. Parecia ter exorcizado aquela noite de angústia provocada pelos pesadelos. Era como se um anjo bem-humorado tivesse posto aquele sorriso ali, sem motivo aparente. Um sorriso deslocado, inoportuno, incoerente. Um sorriso raro no rosto de um homem cujo sonho era ter uma ilha onde pudesse pescar e ouvir tranqüilamente o berro ácido da gaivota.

Os passos arrastados denunciaram sua presença no quarto do filho. O pai olhou no fundo dos olhos do menino. Ficou parado na porta do quarto. A boa sombra. Como de costume, tinha um olhar sem explicação e intrigante. Causava um certo incômodo.

- Somos todos a mesma merda. - O pai disse isso sem rancor, sem gravidade. Seu sorriso descabido saiu do seu rosto para colocar-se, com rigidez, no rosto do filho. E foi nesse instante que o anjo bem-humorado manifestou-se de uma forma mais grosseira, fazendo com que um colibri desordenado entrasse pela janela do quarto a toda velocidade. Fincou seu bico na porta do armário. Morreu. Caçada tardia, patética. Involuntária. Sentiram um pouco de pena, e só.

- Papa, teu sapato está desamarrado. - Teve uma leve tontura ao levantar a cabeça, retardando por alguns segundos a chegada do sangue em seu rosto farto, coberto com pele dura.

Foram até a horta para averiguar a terra e seus frutos. O pai arrancou uma laranja e começou a descascar a fruta com o canivete.

- Quer?
- Não.
- Você viu como a rúcula cresceu bem esse ano?
- Você usa adubo na horta, papa?
- Má Che que adubo que nada! Mas você não conhece mesmo a tua casa... pensa solo nel'arte. O pai comeu com vigor a laranja. Gostava do suco e do bagaço. Gostava de se sujar com a comida.

Era por volta das quatorze horas. Pássaros. Foram almoçar no restaurante Bem-te-vi.

- Pode trazer um pouco de costela de vaca, por favor.

A comida chegou. Comeram com pressa. Como sempre.

(No balcão do restaurante, ao lado da máquina registradora, havia uma coruja empalhada. Um detalhe de muito mau gosto que mereceu alguns comentários sem importância.)

- Ti ricordi daquela passagem do ano emMonte Sião, nós dois pescando lambari?
- Claro que lembro.

Costumavam pescar juntos. Em silêncio. Sentiam muito orgulho um do outro. Em silêncio. Sorriram, tomaram café e foram para casa.

... No carro, a memória: aos onze anos, Ennio matou um pombo branco com uma estilingada. Mostrou-o à mãe e disse morrendo de rir: - Mamma, eu matei o Espírito Santo!!!

Em casa, ouviram música italiana e tomaram chá numa xícara com motivos egípcios. Herança da família paterna. Um tesouro.

- Pensei tanto na mamma ontem.
- Já faz um ano...
- Eu queria tanto sonhar com ela, papa.

Pela janela da sala, o pai pôde contemplar um colibri que bebia água com açúcar num vidrinho que ele havia colocado naquela árvore. Satisfeito, o colibri voou e foi para o céu.

... entre um gole e outro, seu filho lembrou-se de que nunca havia visto a nudez do pai, esentiu tristeza. Gostaria de ter visto o seu herói despido da armadura e poder lavar-lhe as costas... "Se fosse o filho do Lóris, esse peixe não escapava." Frase dita na infância, sem agressividade, mas mostrava a falha. "Desculpa, papa", disse o filho com voz estreita. Ficou impregnado de um sentimento gélido em relação ao pai, que o deixou desarvorado. Não admitia nada, a não ser o amor.

- Ilha. - O pai proferiu essa palavra depois de alguns minutos de absoluto silêncio com uma voz clara e determinada.
- Precisa ter muito dinheiro para comprar uma - disse menino. Olharam para fora e viram a noite.
- Buona notte (quis dizer ao filho que o amava).
- Boa noite (quis dizer ao pai que o amava).

Olharam-se. No início o sorriso, e, logo em seguida, a inexpressão. O anjo bem-humorado havia dado um fim àquele anjo de boca. Deitaram-se.

Na ausência de luar começou a alquimia lúdica, inconseqüente. O anjo continuou a brincar.

- Vamos lá, seu Ennio, pode ir levantando.
- Como assim, que horas são?
- É hora de levantar e vir comigo.
- Você está louco, eu acabei de me deitar.
- Você vai comigo. Vamos lá, grande homem de dezembro...

*

O médico deu palmadas na minha bunda e disse para meu pai que eu era um lindo menino. Aprendi a ler... molhei os pés no rio, "Il Serchio"... apanhei da mãe... cacei passarinhos... comi pão escondido... dei risada de Carlitos... fiz sexo com a puta... aprendi a pintar no Liceu... não fui pro exército... passei a guerra na Itália... fui para o Brasil... namorei e casei... tive quatro filhos... Mônica morreu... trabalhei como pedreiro... mestre-de-obras... tive casas... uma granja... quanto trabalho, meu Deus, quanto trabalho... quanto prazer... quantas coisas não consegui dizer... envelheci no Petit Village em casa tão grande, tão orgulhosa... sua mãe, minha Laura, morreu... fui dormir um pouco irritado e depois esqueci. Esqueci. A propósito: aquele peixe, nem o filho do Lóris pegaria.

Dia seguinte.

Choros, gritos, desesperos, flores, lenços, soluços, olhares condoídos, abraços, etc., etc., etc. Em meio àquela orgia italiana, seu filho foi vê-lo e percebeu na fisionomia do pai um sorriso amarelo. Olhou para o criado-mudo e viu um pequeno bilhete: "não esquecer de colocar água com açúcar para os colibris". O filho estava livre para sentir raiva do homem que amava. Uma suave covardia. A falta de alcance. Guardará para sempre a 20 cano duplo do pai e algumas fotos de caçadas, por amor, pelo seu estranho movimento.

O filho visitará a ilha paterna e escolherá os bons frutos, mas sua caverna estará sempre no continente, com sua gente atormentada e falante. Fará muitas viagens marítimas para louvar o pai. E, dessa ilha de distância triste, olhará com olhos de lince o seu continente, Saudade. E conseguirá ver ninhos em floresta abundante. Aquela visão que o pai ensinou. Voltará. Um dia irão se beijar como só os homens sabem fazer. E o abraço será de força e desafio, de um amor que sempre fugiu do verbo e afogou em olhos.

O filho, que adquiriu brancura involuntária, deu um último beijo na testa do pai, colocou água com açúcar para os colibris e sentiu na pele a presença do sol que brilhava com toda sua majestade e natural indiferença.

do livro A ilha de Sagitário
de Antonio Calloni