Samuel e Maria, a mulher dos trilhos

O sol nascia quando a mulher amante dos trilhos acordou os olhos. O primeiro sinal do dia foi a visão de um homem meio bonito, meio feio. Inteiro Samuel. Novamente de pé aos pés da deitada, recém-desperta, Maria.

Samuel, de esperança sempre renovada, amava a mulher que talvez quisesse ser horizonte para dar continuidade a um ensinamento antigo... Maria, base para todos os vetores, dormia nos dormentes por escandalosa e total semelhança.

"Você é o meu amor, Maria." Samuel queria tirá-la de lá, prometendo à amada seus cuidados de homem. Sobravam-lhe gestos de paixão, gigante desejo de vida.

Depois de muito encontro, a bela, por obrigação poética, pôs-se a falar pela primeira vez. Como se estivesse acarinhando um cão:

         Tu não és meu amor
         porque vens falar comigo
         com voz desonesta de homem
         de fácil repertório.

         Tu não és meu amor
         porque tens o medo
         masculino da noite
         e queres me salvar.

         Tu não és meu amor
         porque como homem
         não compreendes
         meu sorriso subterrâneo.

         Tu não és meu amor
         porque terias pavor
         do monstro de ferro
         a passar sobre ti no meio da noite.

         Eu durmo e o trem passa sobre mim
         porque o espaço é suficiente
         e minha noite é feita
         de feitiços.

         Se acreditares em mim
         posso te amar.
         Se me amares
         posso delicadamente te matar.
         Se morrermos
         poderemos viver,
         amor meu,
         talvez em casa grande ou pequena
         em paragens verdes ou de cores outras,
         mas é necessária a primeira coragem
         e o risco é tão simples...
         Basta deitar,
         basta um pouco de repouso
         para seres meu amor
         se fosses um pouco mulher...
         Não rias!
         Só um pouco...
         Sem perder músculos e pelos,
         sem perder teu rijo fascínio,
         sem perder, só ganhar,
         sem ganhar, só perder,
         vem, amor meu,
         e me cobre viril
         feito reprodutor de raça
         para depois descansar tua
         natureza tão igual à de um touro
         ou à de uma menina ainda não
         desenhada.
         Vem, amor meu
         e dorme comigo
         feito irmão,
         como um santo,
         para podermos sonhar
         profundamente e deixar que
         o trem passe feroz sobre nós
         enquanto dormimos abraçados
         feito dois anjos
         para depois do trem
         acordarmos como faunos,
         como felinos,
         como homem e mulher.
         Vem, amor meu
         o risco é o repouso
         e se quiseres
         eu posso te amar...

         "Deus prestou atenção neste trecho de mundo, Maria. Chega pra lá."

do livro Escrevinhações de Samuel, o eterno (impressões, fragmentos, tormentos e alguma poesia)
de Antonio Calloni