Prefácio - O dado por Deus

O herói não tem pai, não tem mãe, nasce por encanto, vive encantado e encantando. Por isso é eterno! Mas, embora humano, não lhe faltam raízes mais fortes que o mar.

Samuel, Macunaíma redivivo, quase já um século passado, sempre existiu. Sem marca registrada, sua identidade não é singular, traduz as gentes, sendo possível no plural. "É casado, é solteiro, é ficção, é pai, é filho, é real, é coisa", é ator, poeta, escritor... "Precisa comprar pilha" para dar sentidos às coisas. É o protótipo de todos nós, até por que habita o mais secreto dos nossos sonhos.

Samuel sou eu, és tu, é ele, sobretudo somos nós. E é aí que se faz espelho que reflete e refrata a humanidade, na glória e na perdição.

Anna era estéril, rezam as Escrituras, então pediu um filho ao Senhor. E aconteceu Samuel, "o dado por Deus". O nosso. O eterno. Nada mais justo que nosso herói "escute alguém rindo no Céu".

Razão e emoção, Samuel filosofa o-não-sentido das coisas e toma Buscopam para aliviar a imensa dor na barriga. Quer uma cafeteira vermelha porque ama café. "É puro desejo e verdadeira felicidade", mortificado pelo buraco que sente no corpo, na alma e no mundo. Qual a alternativa, comprar um i-Phone ? Tomado até as entranhas de angústia kierkegaardiana, é capaz de perceber que essa mesma "angústia era sinal de uma existência concreta e forte".

É Melchisedec, "arpoado nos mares do sul da Itália", degustador da música napolitana, cercado de contradições por todos os lados. Se pensa na chuva, o trovão atrapalha; se pensa no raio, a luz queima; se pensa na luz, a noite adormece no céu; se pensa no céu, o celular toca. Há nele a modéstia dos sábios e a curiosidade dos doutos. Conhecendo Hipócrates, busca entender-se através de uma interlocução e, sem fraude nem favor, põe-se no divã de Freud sem medo do escuro e das sombras. Se não teme o remédio, não foge da palavra. Chora e ri. Crê e desacredita. Não abre mão de sua crença no mundo, onde, apesar de vazio, acredita haja bondade.

É arte. E por ser arte, inacabado como a Nona Sinfonia, não terminado com Vênus, possível em todos os sonhos.

Fiel cópia de nós mesmos, o herói somos todos nós humanos, plagiadores de Deus, costurando o dia-a-dia como o suor de nosso rosto. A metáfora Samuel, o nosso, o eterno, tem as cores do contemporâneo, onde tons fortes se mesclam com tons fracos, onde dor e tristeza parecem entidades de outro planeta. Parece que o mundo vai acabar amanhã. Então, tenhamos pressa! No ar, o eterno enigma: onde está a felicidade? No caos, ainda viceja o amor!

Conheci Calloni numa tela de TV. Depois, na escrita e ao vivo e muito vivo. Talentoso e tímido, homem e menino, nele a surpresa é um "próprio". Declama Rilke e solta o palavrão sem reticências. Escreve com pena fácil a prosa doce e o verso lírico, onde elegância e estilo se comutam em admirável esgrima de neologismos, metáforas e símbolos, marcando um gênero literário original e, por isso, inovador. Samuel é um auto-retrato. "Animus e anima", no melhor sentido junguiano, passeando pelas metonímias e alegorias que a saga do personagem, "o nosso, o eterno", vai pincelando no duro cotidiano de toda sua existência em todo lugar e em lugar algum.

Em algum momento, Samuel, o nosso, o eterno, leu Ortega y Gasset e sabe onde mora e vive o herói. Há em Calloni a síntese dos contrários que, quero crer, traduzem a convicção de que a heroicidade está no cotidiano, que, como a vida, corre como um poema de Alberto Caeiro... Como pessoa, é afável, desconfiado sem ser mineiro, capaz de inventar um ovo de Páscoa para alegrar a menina pobre no mercado, cujo teto é de chocolate.

O livro debulha cultura, costura delicadeza com escuridão para enxergar a luz do dia. Despe-nos da arrogância e estereotipias, no melhor sentido de Fernando Pessoa na máxima: viver não é preciso. Vida é invenção! Permanente!

Pescador por hobby e teimosia, Egizio Antonio Calloni é antes de tudo surpresa que bem poderia nos fazer o favor de não perder esse dom, o dado por Deus.

João Batista Ferreira

do livro Escrevinhações de Samuel, o eterno (impressões, fragmentos, tormentos e alguma poesia)
de Antonio Calloni