Puxão de orelha

por Pedro Bial

Wilson Martins saberá reconhecer a qualidade deste romance. Se não o fizer, não importa, esta frase já é um bom início de orelha, um puxão de orelha.

Pois mesmo que, perspicaz como só os literatos de Curitiba, o velho Martins testemunhe a grandeza deste livro, dificilmente endossará os secretos, insuspeitados, créditos de tal aventura literária.

Isto que tem às mãos, leitor, é literatura transcendente. E assim é porque, e essencialmente porque, seu autor não é um escritor profissional.

Aliás, o nosso melhor escritor profissional é médico, Moacyr Scliar. E se parece que João Ubaldo tem a escrita como profissão, poderia-se, pertinentemente, contrapor que ele é mais um filósofo encavernado, um historiador enrustido, livre demais para outra Academia que não a de Letras.

Só um médico poderia ter escrito "Os Sertões" do século XX: Dráuzio Varela e seu "Estação Carandirú". Somente um ator poderia assinar "Amanhã, eu vou dançar".

Um ator que parece escrever em resposta às milhares de palavras que já leu, decifrou e decorou. O leitor dessa novela é observador privilegiado do rico diálogo entre um comediante e seus autores, clássicos ou não.

Antonio Calloni compartilha generosamente suas paixões com a gente. Estão lá, todos, nomeados ou não: de Dostoievsky ao Homem-Aranha, de Camus a Hemingway, de John Wayne a Mazzaropi, de Shakespeare a Janete Clair.

Descrevendo minuciosamente paisagens exteriores que parecem delírio e paisagens interiores que arrebatam pela verdade, o narrador desse livro passeia pelos ambientes do corpo e da alma, movido pela compaixão que o ódio carrega. Tudo para contar uma inesperada, surpreendente e inocente história de amor. Qual um ator, a voz que lemos é de ora narrador ora personagem, diferentes o suficiente para que os reconheçamos, unos o bastante pelo bem da história. "Para o bem da história..."

Só um ator escreveria:

" - Eu quero que a senhora morra!!!
O grito do filho é definitivo.
Fêula chega a pensar na possibilidade.
Um diretor invisível ordena o completo silêncio.
Fêula derrama uma lágrima de circo.
O filho pára de chorar.
A chuva desiste.
Outra mulher espera o sexto filho...
Silêncio...
Como eu pude esquecer o açúcar, pensei eu... "

Somente um escritor... Um escritor que não discursa acima de seus personagens. Muito pelo contrário, ele nos fala de dentro de seus personagens para dentro dos nossos. Artista com alma democrata, Calloni faz questão de ser acompanhado em sua viagem, convida, seduz e respeita o leitor. Mais que isso, liberta o leitor, sem tentar subjugá-lo com batutas ou chicotes estéticos.

É por isso que escritor pode ser tudo, menos escritor.

orelha do livro Amanhã eu vou dançar
de Antonio Calloni