Chamadas

Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que quem vos conta esta história de amor sou eu, Jasbi. Tenho 40 anos. E posso me dar ao luxo de rir e chorar dos meus 25, e da minha linda história com Fêula; a mulher de corpo escultural, e possuidora do cheiro mais extraordinário - para não dizer outra palavra - jamais sentido por outras narinas que não as minhas. Pelo menos, não da maneira como eu senti.

Da mesma forma, minha boca sorri quando lembro do meu jeito de galã nouvelle vague, dos meus silêncios, das minhas respostas lacônicas, da minha fúria descabida, da minha pobreza, do meu material de escultor - que guardo até hoje -, e do meu amor.

Lembro, com alguma saudade, das cartas violentas e apaixonadas que minha primeira mulher, Leonor, a espanhola, me mandava de outros mundos. Notícias sobre meus filhos, ameaças, saudade e amor.

Impossível não lembrar, também, da prostituta que me salvou a vida, apesar da dor, física e moral, que eu lhe causei.

Das visitas ao boteco do Almir, lembro bem de sua terrível mania de contar piadas - todas absolutamente lamentáveis - e por ter sido o local onde algumas coisas começaram a tomar forma no meu destino.

Pelo Norberto, o Potestade número 1, sinto um especial carinho. Ele é, para mim, uma constante fonte de inspiração, além de ser o responsável pela fortuna que trago comigo até hoje. Estou rico graças ao bom Deus, ou melhor, graças a esse anjo. Um anjo que tinha apenas um par de sapatos. Mas que belos sapatos...

E agora eu conto como conheci essas pessoas. Conto como conheci Fêula, a pobre cozinheira que vendia coxinhas para poder sustentar o misterioso filho; um inacreditável menino que mereceu meu espanto, minha tristeza e, acreditem, minha total crença de que o mundo pode ser "engraçado" de vez em quando.

Vejo cenas da minha juventude no vaporoso cinema do meu passado, e confesso que a realidade, com todas as suas nuances e odores, me fascina. Essas pessoas e esses episódios me desordenaram, me desacostumaram, e me levaram para um estágio onde o humor, o amor, a pobreza física e mental poderiam ter feito parte de um filme de orçamento caseiro. Um filme trash.

Tenho o direito, sim, de emitir um julgamento a respeito do meu passado, mesmo porque sei que não sou possuidor de uma opinião padrão. A miséria, no sentido físico e moral, foi a poesia da minha viril idade. Uma poesia com anticlímax. Poesia que reduz minha opinião a quase nada. Mas minha tentativa de entender as coisas presentes e passadas me diverte muito e me deixa sempre em movimento, mesmo que este seja a esmo.

... A troca de presentes com Fêula, nosso primeiro beijo, nossas carnes chocando-se entre o óleo e o grito num terreno baldio... como um filme, permanente e real, feito com diálogos e cenas vividas por mim, ou detalhadamente relatadas por Fêula em momentos quando o mundo era apenas nosso cubículo adornado de prazer e eternidade.

O roteiro torto do meu amor e da minha vida compreende beijos, murros e mentiras. Contém as ciganas Oska, Hétera e Iarabetsa. Comporta o demônio Anderson, o marceneiro pirata e porteiro Evair. Contém solidão, muitos livros roubados e lidos, teatro, viagens à Europa feitas com muito sacrifício, o meu aprendizado solitário, o meu orgulho de ser autodidata, e o mais nobre do patético e grotesco. Ou talvez nada disso. Talvez, apenas, um folhetim mal-acabado. Um tormento ínfimo e bem menos definido, se comparado ao tormento daquele estudante russo que matou uma velha a machadadas, por exemplo. Se bem que todos nós cometemos crimes e sabemos que o castigo vem a cavalo quando não compreendemos que não amar e não tomar banho todos os dias pode nos levar a todos à mais absoluta perdição.

do livro Amanhã eu vou dançar
de Antonio Calloni