Calloni: uma surpresa agradável
 

Carlos Peixoto

Pedro Bial tinha na Globo News um programa sobre literatura. Era o Espaço Aberto, mas me disseram que não é mais apresentado por Bial nem dedicado à literatura... Bom! Foi justamente em um desses programas que ouvi, pela primeira vez, falar da literatura de Antonio Calloni. Até então, só o conhecia como ator. Bial estava naquele estilo natural dele, ou seja, se desmanchando em elogios, o suficiente para me deixar desconfiado em relação às qualidades literárias do entrevistado. Preconceito meu, porque, dias depois e por acaso, tive a oportunidade de ler o tal livro: Os Infantes de Dezembro (113 páginas. R$ 25,00. Bertrand Brasil).

Calloni se mostra um poeta da melhor tradição. Na contra-capa o aval de Manoel de Barros, em forma de carta enviada ao autor em setembro/97, não deixa dúvidas e atenta para as diferenças entre Calloni e os muitos poetas novos que versejam por aí. Diz o poeta matogrossense, em certo trecho: “(...) sua mágica vem mais de descobrir a poesia do cotidiano do que de fazer mágica em metáforas e outros tropos. Sua linguagem é muito sua, não emprestou de ninguém”. Manoel de Barros cita os três ou quatro poemas dos quais mais gostou. Eu gostei imensamente de Tempo-seráe O entorta garfos. Do primeiro, sublinhei no meu exemplar os seguintes versos: “Da palavra sei apenas seu desenho. Sou portador de ignorância, e/sua demência não é fruto de fabricação poética, é conclusão./ É fruto dos 4 cálculos./Sou ignorante primevo e animais pintados em cavernas me ensinam.” O segundo poema nos fala das verdades e valores inerentes e naturais nas coisas e em nós mesmos. Gosto quando Calloni nos desafia: “Se eu fosse realmente honesto, andaria com o meu canivete suíço/pendurado no pescoço, e teria no rosto o orgulho dos antigos reis./ Andaria com o sexo da minha mulher pendurado no pescoço,/e teria no rosto o amor dos antigos reis./ Só a inocência assimila a surpresa./ A vivência a prevê./ A ironia a acovarda e a mulher dá à luz.”

O livro de poesias de Calloni é de 99. Já no ano seguinte, ele ganhou o Prêmio Jorge de Lima de Revelação em Poesia (ACL/UBE), ao mesmo tempo que lançava uma coletânea de contos. Em 2002, publicou um pequeno romance e, agora, nos chega O Sorriso de Serapião e outras gargalhadas (112 páginas. R$ 25,00. Bertrand Brasil). Trata-se de um volume de contos, mas como já notara Manoel de Barros a respeito da poesia de Calloni, a prosa em que essas histórias são narradas tem linguagem própria. A matériaprima sai de fatos e personagens que parecem miseráveis e medíocres, mas não destituídos de lirismo. Calloni não deixa a ironia acovardar a descoberta das surpresas e, mantendo intacta a inocência, revela o fantástico que há por trás do cotidiano. Nada surreal nem próximo do “realismo fantástico” que nos acostumamos a ler em Gabriel Garcia Marques ou J.J. Veiga.

A fantasia em Calloni é, inquietantemente, mais real e plausível do que gostariam de admitir os adeptos da pós-modernidade e de uma cultura brasileira globalizada. O premiado João Gilberto Noll (O quieto animal da esquina. 94 páginas. R$ 23,00. Ed. Francis) considera o texto de Calloni exemplo da arte naïf. Isso porque, se os personagens e o Brasil que o autor nos apresenta parecem ser aqueles da “infância história do país”, relacionados ao meio rural, as questões colocadas diante de nós são bem gerais, estão logo ali, em qualquer esquina de qualquer grande cidade. Trata-se, como afirma Gilberto Noll, de “uma certa dormência no ato de viver, uma flutuação sem destino aparente, vivida por criaturas à beira de um idílico estado demencial”. Mais brasileiro do que isso, impossível!

publicado em Toque - Livros & Cultura
em agosto de 2005