Sorriso, riso, pranto

Iara Nascimento

Certa vez disse que rir dos outros sempre é mais fácil. Rir da própria desgraça é para poucos. Talvez este seja realmente o melhor remédio. Pelo menos é o que O Sorriso de Serapião (e outras gargalhadas) nos aponta como o menor dos males. Antônio Calloni acerta mais uma vez. O livro lançado em agosto é de dar gosto (desculpem o fraco trocadilho, mas não pude evitar). Leitura ligeira e simples, com uma escrita primorosa. As vezes as palavras parecem musicadas. Na obra o autor reúne 12 contos, em 112 páginas de puro encanto e surpresa. E lembre-se à surpresas nem sempre são agradáveis. Falo isso em relação aos acontecimentos, ao desenrolar dos fatos... ao destino das personagens. Pois a escrita é rica,complexa e ao mesmo tempo simples como a vida. E essa comparação já resume tudo. A vida nem sempre é simples, mas com certeza nós é que criamos, ou nos damos por vencido diante das dificuldades. Essa máxima do ser humano fica evidente no conto que dá nome ao livro. Serapião é um sujeito humilde, que veio para a selva de pedra atrás de um grande amor. O “cabeça chata” com “um sorriso furado pela ausência de dois dentes superiores. Sorriso em preto e branco, janela para algum lugar vazio e feliz. Olhos esbugalhados no meio de uma cara entalhada pela falta d’água, pela fé, pela ignorância, pela pobreza, pela faca, pela cachaça, pela honra. E pelo sol.”

Serapião compõe para o leitor a aridez do sertão e a leveza da alma. Da alma que sonha e deseja o bem. Mas, que nem por isso, tem a existência que deseja. A vida pode ser grotesca. Feia sim. Sem exageros. Seca. Ela pode sim dar com uma mão e tirar com a outra. E o leitor acompanha esse desatino de perto, arrepiado com a ironia sutil do mundo, do autor.

A obra inteira tem esse tom. Desafia o real apresentando a rotina mordaz, o cotidiano, a mesmice da vida. Mas de roupa nova, de bom caimento, feita sob medida para cada personagem. A leitura é rápida, a digestão nem tanto. É para remoer cada conto. Eles constroem para o leitor um universo de mentes e sentimentos, que muitas vezes ficam a espreita de uma oportunidade para aparecerem. Como em Joaquim e Manú, no qual o amor ingênuo é apresentado como uma brincadeira de criança. Ou como em A gargalhada de Ariosto, personagem apresentado no livro anterior de Calloni, Amanhã eu vou dançar. Ariosto não consegue, não pode e tem medo de sorrir. O oposto de Serapião, que tem como destino e graça da mãe sorrir “(...) o sol queimou metade do teu pensamento, a metade triste. De agora em diante, meu filho, você só pode ser feliz”. Mesmo nos braços de Kelly. A amante que se faz amada por ele e Jasbi. Ou ainda em Vá a merda, que é bem engraçado.

Mas é em José e Anume que beleza e grotesco se misturam. Se fundem. De forma carnal. Na leveza da alma. Aqui não existe certo ou errado. E sim amor, dor e horror. É o leitor quem decide a intensidade desses sentimentos. Calloni apenas descreve a história. O incesto, o sexo, e a fé (seja no que for) compõem a narrativa ”José parecia um anjo”, “A única mulher que para ele existia era sua tenra irmã gêmea, com quem sempre morara”, “Anume sorriu como uma santa, aproximou seu rosto da mão do irmão e lambeu-lhe a palma abençoada. Foi a primeira vez”. A primeira coisa que me veio à cabeça foi Os Sonhadores, filme de Bernardo Bertolucci, que apresenta o incesto, o sexo e a fé (em alguma coisa) de forma lúdica, como pano de fundo para os ideais de uma geração (o filme se passa na Primavera de 68, em Paris, palco de muitas reivindicações estudantis). Neste filme, Bertolucci consegue causar no espectador frio no estômago, curiosidade e ansiedade de forma magistral. Como se todos os sonhos, ilusões e desejos das personagens fossem a única coisa acontecendo naquele momento. E o conto de Calloni também consegue esta proeza. Com o detalhe de não ter o auxílio da imagem, dependendo da imaginação do leitor.

O sorriso de Serapião realmente tem outras gargalhadas, nem sempre alegres é verdade. Irônicas, nervosas, sarcásticas. Às vezes de canto de boca, escondidas atrás de uma lágrima. Cheias de medo, desejo, saudade. Mistério sempre. O encanto do livro está nessa mescla. Contos realistas, com uma pitada de ilusão. Um delírio saudável. Um colorido para evitar a mesmice da vida, que não precisa ser muito. Mas que em qualquer circunstância e para qualquer pessoa é tudo. E como tudo na vida, a obra também tem momentos fracos. Mas, estes são facilmente superados pelo que há de melhor em Serapião, José e Manú.

publicado no site Poppy Corn
em 25 de setembro de 2005