O ator que se transforma em poeta
Livro de estréia de Antonio Calloni revela senso poético, humor e erotismo

Olga Savary

Não satisfeito de ser o grande ator que é, em todo e qualquer papel que atue, imprimindo densa humanidade nos personagens que cria em teatro, cinema e TV, Antonio Calloni lançou neste ano redondo de 2000 seu primeiro livro, Os Infantes de Dezembro: poesia viva como sangue e atordoadora como êxtase.

Esta é uma literatura como deve ser: cosa mentale, como queria Leonardo da Vinci, e feita de carne, coração e tripas, como queremos todos que estamos, como o Autor, com a vida presa pelos dentes. A poesia vigorosa de Os Infantes de Dezembro possui os três elementos fundamentais à vida e à criação: senso poético (lirismo), senso de humor e senso de erotismo. Sem os três, como diz Gonzaguinha na música, não dá para viver, não dá para ser feliz. Dos três é tudo o que se precisa na vida.

O ator-escritor (ou escritor-ator), passa, tanto no texto como na interpretação, humanidade e verdade, amor e humor (no dizer de Oswald de Andrade). Apresentado nas "orelhas" por Ilse Rodrigues Garro, que tão inteligente e dignamente fala deste livro de poesia, com o necessário "afastamento brechtiniano", coisa difícil ou pelo menos nada fácil na posição dela (mas possível, por conhecer a fundo o escritor-marido e principalmente por ser escritora e jornalista). Resultado: ninguém o teria feito melhor.

Esta poesia é cheia de fúria e alegria, de castigo e libertação, flagelo mas também alimento, abrigo, devoção, contentamento comas maravilhosas coisas simples da vida. Pode ser também a rosa do oriente, sonho que sonha e reflete, chegada e partida, herege e bendita, uso e abuso, dor e gozo, sensual e arisca, pássaro e peixe. Como o Autor, vale ser amena e cruel, acuada e segura. Isto é, um pouco de tudo e de todos nós. A poesia costuma exibir-se e usar máscara: não é o poeta fingidor, no dizer de Fernando Pessoa? Esta roga tempestades, sendo oásis e deserto.

Calloni inventa sua poesia como tosco de cartola que entorta garfos. Da palavra sabe apenas o desenho, como diz. Confessando-se ignorante primevo, com animais pintados em cavernas aprende. O texto às vezes condena mas sempre cura. Ele inventa sua poesia para se entender e para multiplicar facas. Deformando o mal em jogo de elegâncias, espera que arcanjos venham beijar-lhe a boca. Inventa sua poesia por ter um Dinossauro de Dezembro a habitar suas palavras e a romper com as patas transparentes um pote de delírio aprisionado. A poesia o inventa e o dia seguinte amanhece alguns metros maior.

O poeta cavalga as ancas largas da magia poética que puxa seu urro de búfalo, que o venta, o anoitece e o reluz. O poeta, este, faz poesia canhota e lúbrica, plena de regozijo, e nos momentos de folga ri para o céu e beija bocas de uma só fêmea, alegre de esmos. Como não gostar de um fazer poético que ri, anda de roda-gigante, grunhe no amor e faz o diabo? Só lhe interessa a poesia que mexe com ele e, mal ele se vira pra ver, ela já se foi, rindo da sua cara de urso.

Para Calloni, em Os Infantes de Dezembro (que já se chamou Entorta garfos, segundo carta de Manoel de Barros ao Autor, na 4ª capa), poesia deve se juntar ao seu corpo feito carrapato e deixá-lo satisfeito como os tontos de esquina. Leitor, você não quer comprar uma poesia que se camufla de fêmea e funciona com baterias de lítio? Palavra é matéria possível e poderosa, que nos aumenta, engrandece o corpo e a vida.

Olga Savary, poeta e jornalista, é membro do conselho editorial de PALAVRARTE.

publicado no jornal O Globo
em 23 de dezembro de 2000